domingo, 31 de outubro de 2010

Crônica de (mais) uma morte esperada*


*Em lembrança do primeiro ano da morte de Jenivaldo Vera, professor assassinado, em outubro de 2009, em Paranhos, Ypo’i, MS


Enquanto os Kaiowá e Ñandeva se moviam andrajosos pelas ruas de Dourados e região, incomodavam pela estética, pela “sujeira”, pela vagabundagem, pelo alcoolismo. O desconforto vinha da constatação implícita de que havia algo de errado, ou podre, no reino pujante de uma região feita para produzir, enriquecer e esquecer o seu passado/presente indígena. Vividas gerações, os andrajosos, pobres na concepção dos regionais, vêm se tornando estudantes universitários, blogueiros, artistas de cinema, fotógrafos, professores, advogados, ativistas políticos, membros de comissões governamentais, alem das clássicas categorias de soldados da cana, derrubadores de matas e bugres sem adjetivo mais.

Seus detratores, contudo, não arrefecem. Bugre é bugre, e não importa (do) que morra. Se vai ser por desnutrição, suicídio, facada, estraçalhamento do “podão” usado para cortar a cana-de-açúcar, alcoolizados, drogados, pelo estupro de mulheres e crianças, não vem ao caso. Na miríade de problemas causados pela desorganização social de quem perdeu a casa há muito tempo, tanto faz se morrerem em silêncio, ou somente nas páginas dos jornais. Desde que seja no interior da aldeia, e de lá venham apenas as notícias escabrosas e a confirmação de serem seus habitantes gente de menos valia: uns bugres!

Se fosse possível que não mais existissem...porque das aldeias também saem os clamores pelas demarcações de terras, pelo fim da subnutrição das crianças, por mais saúde, educação, segurança, como qualquer grupo humano e isto, em dado momento, chega a ser acintoso. Afinal, são bugres, por que deveriam querer cidadania?

Das aldeias saem os reclamos indicando que não há áreas suficientes para plantar e viver segundo o modo próprio de ser. Das aldeias vem o sussurro de que alguma coisa estranha acontece, pois as terras agricultáveis existentes são disputadas palmo a palmo pelas numerosas famílias, vivendo como em campos de concentração. Sobre as aldeias corre também a denúncia da muita terra para pouco índio. E da negociação de arrendamentos entre os índios com os próprios denunciantes da existência da muita terra e do pouco índio. Estes, não se fazem rogados diante das ínfimas quantias pagas pelo uso das terras indígenas, quando as arrendam. Pouco importa também se os negócios são ilegais, ou usufruídos por pequena parcela das comunidades. No mesmo momento, a lógica se inverte: se os tratos com os bugres são generosos para a produção, qual o problema?

Enquanto os Kaiowá e Guarani-Ñandeva perambulavam em busca do pão velho, havia vergonha e mal-estar, porque destoavam da auto-imagem regional, onde os campos plantados significam poder e orgulho, ainda que não alimentem a todos, ainda que causem exclusão. Esquecidos tinham sido os braços dos índios que “abriram” a terra de semear pastos, primeiro colhendo a erva mate nativa, depois derrubando as matas e limpando os tocos, até que a região se transformasse em celeiro. Celeiro para seus antigos patrões, cestas básicas para si mesmos, num último gesto de piedade.

Seja na ponta do revólver, seja com promessas (de que na reserva haverá assistência...), lenta e persistentemente enxotados, liberaram suas terras para a titulação, e deram vez a que os preciosos documentos sejam ostentados como prova de não serem as fazendas terras de índios. O próprio mandatário máximo do Estado, num seu rompante típico, declara com veemência: Mato Grosso do Sul não será terra de índio! E deixa escapar o ato falho: se não será, ou é, ou já foi....

Nas reservas, a gente era muita e o chão de plantar e viver ritualisticamente pouco, nas oito primeiras demarcadas até 1928, e outras vinte, até a década de noventa, e a morte acabou chegando. Mas isso também era assunto menor, desde que comissões parlamentares intrometidas não aparecessem para checar os números, e entender porque morriam tantas crianças e havia o silêncio dos brancos vizinhos. Os mesmos que “empregaram” os pais e avós dos guaranis contemporâneos, nos desmates e na formação das fazendas, agora se calavam, convenientemente esquecidos da força do braço indígena.

Foi assim enquanto os Kaiowá e Guarani-Ñandeva não eram professores. E se não morressem de fome, podia-se também matá-los, sem mais. Uma bala, um par de pneus numa camionete possante, alguns litros de aguardente, até que caíssem de exaustão sob um fardo de erva ou sobre a pilha de cana cortada. Quando os Kaiowá não eram professores, podia-se ignorá-los, não dar-lhes nomes, não investigar suas mortes violentas, não publicar notas nos jornais, “colocando-se a disposição”, para o esclarecimento do caso.

Depois de Marçal de Souza, o Ñandeva morto com cinco tiros, um na boca, em 1983, ao ter falado ao Papa das dores do seu povo, tombaram sem alardes maiores Marcos Verón, Shurite Lopes, Ortiz Lopes, Dorvalino Rocha e Dorival Benites. Os homens, lideranças políticas, e a mulher, rezadora. Não eram professores, não partilhavam dos códigos da sociedade nacional que privilegia os diplomados. Mesmo parecendo, as mortes não foram aleatórias. Cada um dos caídos empregava sua vida na (re) conquista dos direitos de seu povo, seja com dons de liderar, seja com os dons do espírito. Em 2009, conta-se nos dedos os indígenas inseridos nas estruturas socioeconômicas da sociedade regional. Talvez não se complete as duas mãos. Talvez não seja possível dizer que ocupam cargos, além de alguns poucos eletivos, insuficientes para se fazerem ouvidos, numa democracia que se diz representativa.

Por isso, podiam morrer, anônimos, baleados, atropelados. Por isso, podiam ser escorraçados dos seus tekoha, essa a maneira tradicional de estar no espaço físico/mítico, dele retirando a subsistência, gerando excedentes para alimentar os visitantes e realizar trocas. E, mais importante: haver-se com os espíritos. Pelo poder dos maracás manter a terra sã, pois são seus guardiões. A caça precisa existir, as plantas de curar e comer não podem ser eliminadas, a água tem de ser abundante, para que os peixes não faltem. Enquanto Copenhague murcha, e Kioto é lenda karai, os Guarani não têm dúvida: se a terra não for cuidada, haverá um cataclisma, e todos perecerão.

Cuidar da terra, nela viver, segundo o modo de ser guarani. Sonho, missão, luta. Mas se algum dos jovens homens se aventura e, acompanhado de sua família e do tamoi rezador, decide voltar para o seu lugar, o tekoha, o adjetivo invasor cai bastante bem e justifica toda violência, muita arrogância e mais mortes.

Mas eis que alguma coisa se modificou: quem morre agora é professor. Se é professor domina os códigos e a língua dos opressores. Se é professor, sabe por que o pai e o avô insistem em voltar a um lugar hoje cercado, e usado pelo branco como se fosse seu. O branco ainda argumenta: sempre fomos amigos. A lógica, não desprovida de certo cinismo, é real: os amigos indígenas efetivamente ajudaram a tombar o mato e correr o arame, cercando seus próprios lugares de viver, para depois serem expulsos.

Se é professor, conhece a história, e a importância dela. Se é professor, mas se parece com um bugre, não será poupado, porque pistoleiro não é pago para fazer distinções. No entanto, se é professor, faz falta aos alunos, ganha notoriedade, e merece pela primeira vez nota pública do governo. Os Kaiowá e Ñandeva estão mudando, como tanto insistiram os primeiros explicadores dos índios, usando palavras como integração e assimilação. Estão mudando e agora são professores que perdem as vidas nas retomadas. Vão mudar mais, e seus contrários não perdem por esperar, porque quem viver Verá.

* Quando reviso este texto, em 31.10.2010, os ocupantes de Ypoi me informam que, nesta manhã, um grupo de quatro motociclistas (pistoleiros, jagunços, armados?) impediu pacífica homenagem a Jenivaldo, em memória de seu falecimento há um ano, arrancando as faixas colocadas pela comunidade em memória do professor. De longe, escondidos na mata, o grupo observou, mais uma vez, a violência e intimidação.

Adriana de Oliveira Rocha é advogada e é membro da CEAI/OAB/MS
Foto: Acervo da CEAI/OAB/MS

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