terça-feira, 10 de maio de 2011

A importância da mulher na sociedade kaiowá

Figura materna é fundamental na estrutura do povo kaiowá, frisa o antropólogo Levi Marques Pereira. Os homens indígenas desse povo legitimam a importância da mulher e as crianças têm um convívio prolongado e próximo com suas mães


 
Por: Márcia Junges
Um papel de destaque. Esse é o lugar conferido à mulher kaiowá dentro de sua sociedade. De acordo como antropólogo Levi Marques Pereira, “é possível dizer que as mães têm sido o principal sustentáculo dessas sociedades. São elas as principais responsáveis pela reprodução cultural, ensinando a língua e uma série de procedimentos culturais para as crianças, além de estarem presentes no dia a dia, oferecendo carinho e proteção”. O processamento dos alimentos e o fogo culinário que também serve para aquecer a família e espantar insetos, também estão a cargo da mulher. “Os homens compreendem que a figura materna é essencial para sua sociedade. Tal figura se inspira no comportamento dos deuses, que nos patamares celestes vivem com suas mulheres e filhos”, aponta Levi. Quanto às crianças, o pesquisador afirma que desde pequenas elas “desenvolvem sentimento de liberdade e autonomia e, consequentemente, pouca disposição de seguirem um líder autoritário”. As reflexões fazem parte da entrevista seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, especialista em História da América Latina pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS, é mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e Universidade de São Paulo – USP, respectivamente, com a tese Imagens kaiowá do sistema social e seu entorno. É pós-doutor pela Unicamp e leciona na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. De sua produção bibliográfica, destacamos Os Terena de Buriti: formas organizacionais, territorialização e representação da identidade (Dourados: Editora da UFGD, 2009). Também é um dos autores de Ñande Ru Marangatu: laudo pericial sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, em Mato Grosso do Sul (Dourados: Editora da UFGD, 2009).

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Há um traço comum entre as mães nas diferentes culturas?
Levi Marques Pereira - Creio que sim. Mesmo não entrando nas discussões do campo da biologia, é possível afirmar que nas diferentes culturas a gestação e a maioria dos cuidados práticos com a criança nos primeiros momentos após o nascimento é realizado pela mãe, especialmente a amamentação, que cria um forte vínculo entre as duas. As distinções de gênero, que propõem a cisão do mundo humano entre masculino e feminino a partir da significação cultural do dimorfismo sexual, só gradualmente vão se estabelecendo nas crianças. Até que as percepções de gênero e das distinções geracionais comecem a se estabelecer, a identificação da criança com a mãe tende a ser profunda nas diferentes culturas.

IHU On-Line - Qual é o papel e a importância da figura materna na sociedade indígena?
Levi Marques Pereira - O antropólogo sempre começa a responder uma pergunta desse tipo afirmando que isto pode variar muito de uma sociedade indígena para outra. Em geral, as mães indígenas são extremamente cuidadosas com suas crianças, dedicando a elas muito tempo, aplicado em cuidados práticos e rituais. Entre os kaiowá de Mato Grosso do Sul, falantes de língua guarani, a figura materna é bem distinta na nossa própria sociedade. Primeiro porque a profundidade do vínculo da mãe biológica com a criança depende de fatores sociais externos à relação que se estabelece entre elas. A estabilidade conjugal é um dos principais fatores – quanto mais forte for o laço conjugal entre os pais da criança, maior será o vínculo entre a mãe e a criança, o mesmo valendo para a relação entre o pai e a criança. Outro fator é o grau de inserção do casal e os filhos em um núcleo de família extensa ou parentela. Quanto maior for essa inserção, mais destacados serão os papéis e a importância da figura materna na sociedade kaiowá. Assim, a estabilidade conjugal e a inserção do núcleo familiar na parentela são requisitos para plena realização das atribuições que mais dão destaque à figura materna entre os kaiowá. A plenitude da realização a respeito de quando a mulher se torna articuladora da parentela torna-se referência na agregação de seus filhos e netos, demonstrando a capacidade de promover uma convivência harmônica na parentela.

IHU On-Line - Que outras funções a mãe indígena desenvolve na sociedade?
Levi Marques Pereira - A mãe indígena é produtora, geralmente muito envolvida nos cuidados com as lavouras, cujo trabalho de derrubada, limpeza e plantio normalmente é realizado pelos homens. Também atua na coleta de frutos e outros recursos existentes no ambiente. A mãe indígena controla o processamento de alimentos, que se realiza no fogo culinário. Controlar o fogo lhe dá a prerrogativa de alimentar os membros de sua família. O fogo também aquece, espanta os insetos, enfim, protege. Por exemplo, entre os kaiowá, as pessoas se sentam ao redor do fogo para tomar mate ao amanhecer ou ao anoitecer, sendo também uma metáfora para a união do grupo familiar, pois nesta roda não costumam sentar pessoas que não pertencem à família.

IHU On-Line - Como os homens indígenas compreendem a figura materna?
Levi Marques Pereira - No caso dos kaiowá, as distinções entre homens e mulheres instauram também algumas hierarquias, muitas vezes questionadas pelas mulheres indígenas, vivenciada de distintas maneiras nas diferentes parentelas. Os homens compreendem que a figura materna é essencial para sua sociedade. Tal figura se inspira no comportamento dos deuses, que nos patamares celestes vivem com suas mulheres e filhos. Os xamãs kaiowá, homens e mulheres, visitam as famílias divinas, interagem com elas, observam o modo como se comportam e tentam implantar tais modos nas relações que estabelecem com seus patrícios humanos.

IHU On-Line - Como funciona a organização social familiar dos kaiowá?
Levi Marques Pereira - Ela é baseada na família extensa ou parentela. Cada parentela é composta por um número variável de famílias nucleares, dificilmente superior a cinquenta. Uma comunidade local, que eles denominam de tekoha, é composta por três a cinco parentelas, aproximadamente. A parentela é organizada por um casal de expressão, que através do carisma agrega o grupo de parentes em torno de si. Ela segue a orientação de desse casal, que tem a atribuição de orientar e aconselhar. O papel da mulher é de suma importância na organização da parentela. Geralmente a esposa do articulador é também articuladora política, além de parteira, e líder religiosa.

IHU On-Line – Afirma-se que as mães indígenas nunca abandonam seus filhos, levando-os para onde quer que vão. Como podemos compreender a relação entre mães e filhos nessa cultura?
Levi Marques Pereira - No primeiro ano de vida a criança passa o tempo todo ao lado da mãe. Muitas a carregam junto ao corpo e ela pode facilmente alcançar o peito e mamar sempre que tiver necessidade. Quando começa a caminhar ela passa a desfrutar de muita liberdade para explorar o ambiente. A educação indígena estimula na criança o senso de cuidado consigo mesma, o que leva a independência precoce (para os padrões praticados na nossa sociedade). É comum ver uma criança muito jovem subindo em árvores, ou mexendo com instrumentos cortantes sem receber represália dos pais. Desde jovem desenvolvem sentimento de liberdade e autonomia e, consequentemente, pouca disposição de seguirem um líder autoritário.

IHU On-Line - Quais são os rituais ligados ao nascimento de uma criança indígena?
Levi Marques Pereira - No caso dos kaiowá são muitos os rituais. Eles começam desde que a mulher engravida e envolvem regras alimentares e comportamentais que devem ser observadas pela mãe e pelo pai da futura criança. Quando a criança nasce continua a necessidade de observar esses cuidados, que vão se afrouxando à medida que ela cresce. Mais uma vez, vale mencionar que os cuidados são mais observados no caso de casais com maior estabilidade conjugal e que estão mais bem integrados na parentela. A observação de tais cuidados está intimamente relacionada com as expectativas sociais que se projetam para a criança, instaurando processos de diferenciação social desde a primeira infância.


IHU On-Line - Quais são os maiores desafios de uma mulher indígena que é mãe?
Levi Marques Pereira - No caso dos kaiowá parece ser a dificuldade de inserir sua família nuclear em uma parentela com grau mínimo de coesão, dado a enorme fragmentação a que as parentelas estiveram sujeitas com o processo de perda do território. Isto levou ao aumento das separações dos casais e a dispersão das crianças, adotadas por parentes que também muitas vezes não conseguem atender às necessidades básicas das crianças e proporcionar os cuidados rituais para o desenvolvimento satisfatório.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Levi Marques Pereira - Dada as difíceis condições históricas enfrentadas pela maior parte das sociedades indígenas, é possível dizer que as mães têm sido o principal sustentáculo dessas sociedades. São elas as principais responsáveis pela reprodução cultural, ensinando a língua e uma série de procedimentos culturais para as crianças, além de estarem presentes no dia a dia, oferecendo carinho e proteção.



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