Ninguém lê reportagem sobre índio
Digo isso porque no jornalismo aprendemos na lida diária que falar de índio não vende jornal. Nem tragédias envolvendo essas comunidades são reportagens bem lidas por aqui.
A sorte no meu caso é que também aprendi a não acreditar cegamente no que dizem as estatísticas e sempre trabalhei em veículos que respeitam o que é noticia, não apenas o que é mais lido.
Como adolescente em Dourados, também passei bons anos ouvindo os “bugres” na porta de casa pedindo “pão velho”. Não, não é só poesia de Emanuel Marinho, é verdade. Eles pedem realmente pão velho.
Mas foi roubando manga em dia de visita de escola à reserva indígena que levei o troco. Sem graça, catando ligeiro o que uma colega jogava lá de cima da mangueira, de repente vi uma menina guarani ao lado oferecendo uma sacola maior.
Sai de lá com “manga coquinho” suficiente para a turma inteira e me sentindo uma idiota por achar que alguém ali iria negar uma manga, talvez porque na minha casa todo mundo chamaria de ladrão uma pessoa que entrasse e pegasse algo sem pedir.
Cada um tem os seus motivos para defender uma bandeira, eu sempre descobri os meus dentro de uma aldeia. Uma dessas vezes foi em uma oca de mais de 10 metros de altura, em outra comunidade de Dourados.
Sob aquela arquitetura perfeita, uma família guarani sem dentes exibia o feito do dia com um largo sorriso: encontrar 8 frangos podres a beira de uma estrada.
O primeiro e principal motivo, nesse meu caso, foi a admiração pela capacidade desse povo ainda conseguir ensinar, apesar de ter tão pouco daquilo que as pessoas costumam prezar: o desnecessário.
Também já vi pai desesperado tentando diminuir a dor de dente de um filho aos berros em aldeia de Tacuru, retirando o que podia da cárie com palito de dentes. Assim como vi uma senhora tirando farpas dos pés marido como se fosse um ato de amor, assim como conheço a arquitetura desses povos e sei das contribuições que nunca foram tão atuais, como a sustentabilidade.
Já conheci índio bandido, índio cantor, índio risonho, índio vereador, índio professor, índio assassino, índio assassinado, índio pobre...até porque índio é gente e gente é assim, de tudo um pouco.
Nunca vi índio rico assim como a gente sonha em ser. Não aqui em Mato Grosso do Sul.
Na verdade, nunca nem sequer conheci um índio nas aldeias que quisesse ser rico. Tive a sorte de conviver com pessoas que têm a felicidade em um pedaço de terra, como uma senhora terena na Aldeia Limão Verde, em Aquidauana, que cega contava não ter mais nenhuma importância o enxergar, porque já tinha visto de tudo mesmo e agora só queria era aproveitar a paz do olhar para “pensar melhor”.
Nunca entendi como alguém sem ter pisado em uma aldeia ou participado de uma Aty Guassu (grande assembleia guarani) pode saber tudo sobre “índios fedorentos”, “oportunistas”, “manipulados” e “vagabundos”.
Nós últimos anos também foi difícil compreender tantos outros episódios. Nunca entendi como a morte de 2 crianças indígenas gêmeas em Campo Grande, no mesmo dia, na mesma hora, em um terminal de ônibus, em 2010, também não foi fato suficiente para gerar uma investigação.
Por anos guardei na gaveta um fax com as portarias da Funai que criaram em 2008 grupos de estudo para demarcação de terras na região sul do Estado, até as palavras sumirem do papel. Fico pensando na indignação de quem vê isso há gerações. Se a maioria não quer ler nada sobre os índios, imagine quem quer ouvir.
Tudo isso parece tão piegas quando eu mesmo releio os parágrafos anteriores... mas é só uma verdade, a que eu conheço e que senti vontade de dividir, como a menina guarani, dona do pé de manga.
(*) Ângela Kempfer é jornalista e editora do Lado B
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